segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Memória ingrata

Uma noite normal, cansada demais para manifestar qualquer objeção. Ela me acorda ''não consigo dormir, tive um pesadelo...'' me abraça ''sonhei que tava morta, e estava me vendo de cima'' ''não precisa ter medo, eu tô aqui, te protejo''. Não vou a aula, continuo abraçando-a e pensando que poderia, confortavelmente, passar o resto da vida ali, com ela. Acordamos. Andar de mãos dadas, dedos entrelaçados, sorrir. Implicância. O surto ''se você tá tentando me irritar, já conseguiu, eu não aguento mais, vou acabar ficando louca!''. Um sorriso triste, mas de certa forma satisfeito. Em casa. ''Você vai sair comigo?'' queria responder que sim ''acho que não, você vai de carro?'' ''Claro né'' ''então não vou''. Eu fecho a cara, ela fecha a cara por eu ter fechado a cara. ''Você vai ficar de pirraça?'' ''vou, se você for de carro!'' ''relaxa, vou de ônibus''. Alívio, fica tudo bem. Sorrisos, brincadeiras, olhares cúmplices. Na hora de sair, ela pega a chave do carro ''mas você não ia de ônibus?'' '' eu vou voltar de ônibus'' Descobri o que é um mal pressentimento ''mãe, diz pra ela não ir de carro, vai dar merda!'' Nada. ''Então vai logo, tchau!'' ''Tchau, nenem...'' Argh, debochada. ''Vai logo pra eu fechar o portão!'' Ela me entrega o presente de aniversário da minha irmã ''deixa ai, vai que acontece alguma coisa''. Entra no carro e acena um tchau com aquele sorriso triste. Fecho a cara. "Até amanha''. Mensagens normais durante a tarde, uma ultima ligação. "Então você não vem mesmo?'' "Não!". Me arrependo no mesmo instante. Agonia e ansiedade durante toda a noite. Penso que ela vau me trair, me abandonar, me esquecer. Ultima mensagem, peço por um sinal de vida, 23:11 da noite. A resposta ''vai tomar no cu''. Vou dormir, irritada. Meu coração dispara, angustia, um medo inexplicável. De manhã, uma ligação de sua mãe. Ligo para ela, o chão sob meus pés parece inexistente. "Como assim ela morreu, Sônia?" "Ela bateu o carro, não tá sabendo?'' Desespero, dor, angustia, estado de choque. Uma ligação só pra ter certeza. ''Como assim minha namorada morreu e ninguém me avisou, André?" Dor imensurável. Nada faz sentido, um nó imenso na garganta e lágrimas todo o tempo. Instituto médico legal. Um pensamento ''nossa, se a Bianca soubesse que está aqui... morreria'' Ainda é inacreditável, sua mãe me abraça ''lembra que eu pedi pra você cuidar dela por mim?'' e eu ouço ''a culpa é sua''. Amigos, pânico, dor, família, choro, tudo é um imenso borrão. Carro fúnebre. O rostinho que eu fazia carinho todos os dias, destruído, sangrento... morto. A tarde passou como um segundo, tanto choro, tanta dor, achei que não sobreviveria. Três corações, velório. "Ei, vem aqui pra dentro, tá frio ai fora'' no meu pensamento, quem estava frio era meu coração, morto. Um caixão pequenininho, magrinho, como ela. "Não fica impressionada.'' ''Tá tão ruim assim?". Seu pai afasta-se e me dá passagem, dou um passo pra frente, um precipício. Meu neném, meu anjinho, meu amor... Ah, minha Bianca! Aquele rosto reconstituído nem parecia o que eu beijava todas as noites, os olhinhos fechados, não conseguia nem fingir que ela dormia, a boca que eu conheci tão bem, nem parecia a mesma. Mãos que eu segurava quando sentia medo, que faziam carinho pra eu dormir, mãos que eu nunca mais tocaria. Olhos que eu nunca mais veria, risada que eu nunca mais ouviria, lábios que nunca mais seriam beijados. Nunca mais nunca tinha sido tão literal. Lágrimas nunca tinham sido tão excessivas. O tempo parecia não existir. Nem sentia mais frio, só dor. Porque o meu coração ainda batia? Um pensamento tão idiota... ''Será que ela tá descalça?'' e bem, até hoje me pergunto isso. Cortejo fúnebre. Nunca vi algo tão triste, tão mórbido. Toda a cidade seguindo aquele caixãozinho pequeninho, com meu amor dentro. Missa. Só consigo lembrar de ter pensado ''mulheres podem ser padres?" e ela odiaria estar ali. Daria risada das palavras erradas e debocharia do que ela estava dizendo. Não posso deixar de sorrir um sorriso que se transformou em um turbilhão de lágrimas. ''Porque você não levanta? Anda, acorda! Para de brincar comigo, para com isso...'' Nada. Enterro. Não tem terra, é uma especie de urna, tumba ou sei lá, uma caixa de concreto que colocam o caixão. Meu amor vai passar a eternidade ali dentro? Fecharam com tijolinhos e todos foram embora. Eu fiquei ali, se pudesse ficaria pra sempre. "ah, meu anjinho, como você pode fazer isso comigo? como você me deixou aqui sozinha? eu não vou conseguir sem você...'' A dor não acabava, eu queria arrancar meu coração, parar de chorar, me atirar num precipício. Qualquer coisa que fizesse aquilo passar. ''Vai ver que eu estou tendo um pesadelo...'' Mais conversas, algumas risadas, verdades ditas tarde demais, confissões, medo e dor. Mais borrões. Viagem de volta, durmo no ônibus. Acordo, venho em piloto automático para casa, entro no meu quarto e bem, não era um pesadelo.

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